segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Quem quer lucrar com mudanças no clima precisa pagar caro até desistir

Folha de SP
Reinaldo Lopes
28 de agosto de 2016

Thomas Hobies, autor de Leviatã

Hoje é dia de começar com uma citação clássica, e no idioma original, mui gentil leitor. "Covenants, without the sword, are but words" ou, numa pálida tentativa de tradução para o português, "tratados, sem a espada, não são mais que palavras".

Assim escreveu em "Leviatã" o pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679), um dos patronos da filosofia política moderna. (Uma das dificuldades de capturar o sabor do original é a força do termo "covenant", usado em inglês para designar a aliança entre o Deus bíblico e os israelitas no Antigo Testamento.) Hobbes se referia a uma das verdades mais atemporais e deprimentes da natureza humana: raros são os acordos entre grupos de nossa espécie que sobrevivem sem a ameaça de alguém mais forte, pronto a distribuir bordoadas na cacunda de quem ousar descumprir sua palavra.

Temo que essa seja a principal pedra no sapato das tentativas de estimular ações contra a mudança climática, um temor que foi reforçado pela leitura do magistral livro-reportagem "Caiu do Céu: O Promissor Negócio do Aquecimento Global", assinado pelo jornalista americano McKenzie Funk e lançado no Brasil pela editora Três Estrelas.

Se você já desconfiava que a elite financeira e industrial do planeta é majoritariamente composta pelo tipo mais rematado de canalha, gente cujo principal talento é ganhar rios de dinheiro ferrando com a vida dos outros, a leitura de "Caiu do Céu" fará com que essa hipótese pareça fato 100% confirmado.

As primeiras dezenas de páginas do livro são suficientes para induzir o reflexo de vômito em qualquer sujeito com alguma consciência: grandes empresas petroleiras e de transporte marítimo montando convenções de negócios carnavalescas em parceria com os países do Ártico (como o Canadá, a Rússia, a Noruega e os EUA), basicamente porque o derretimento do gelo marinho ao redor do polo Norte vai ser uma beleza para as rotas de comércio, a exploração de petróleo em águas profundas e a expansão do plantio em terras que antes eram frias demais.

Os grandes capitães da indústria global merecem cada centímetro cúbico do vinho de nossa ira, mas não se esqueça de guardar um pouquinho dela para"¦ os inuítes (popularmente conhecidos como esquimós) da Groenlândia. Assim como ocorre com o pessoal da Shell, os olhos dos inuítes groenlandeses também andam crescendo diante da perspectiva de cobrar grossos royalties dos interessados em explorar as riquezas minerais de sua terra, cada vez mais postas a descoberto pelo recuo das geleiras. Pode ser que esse derretimento todo inunde metade de Bangladesh e acabe com as praias do Rio, mas é a vida, certo?

Note que ninguém da turma do olho gordo (inclusive as petroleiras) nega a realidade da mudança climática ou o fato (porque, desculpaí, é um fato) de que ela é causada principalmente pelo ser humano. A questão é que não há mecanismos claros para forçar ações que ajudem a reverter o fenômeno e, portanto, a ação mais economicamente sensata é tentar tirar o máximo proveito possível das transformações vindouras.

O que nos traz de volta à espada de Hobbes. Não dá para esperar que a "conscientização", e nem mesmo que o autointeresse, faça com que os responsáveis tirem o traseiro da cadeira. Precisamos de uma espada que corte, se não jugulares, ao menos a parte mais funda do bolso de quem ligou o aquecedor da Terra.

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